Constelação Familiar ou Constelação Sistêmica é uma intervenção terapêutica, um processo de terapia brevíssima. Essa abordagem invade o mundo com sua eficácia e simplicidade, ocupando espaços nas áreas da psicologia, do direito, da saúde, da educação e das empresas, o que, talvez especialmente por esse motivo, receba duras críticas. As críticas podem ser uma alavanca para que haja novos posicionamentos ou mesmo uma evolução em relação ao conteúdo da crítica.
Aqui gostaria de abordar duas críticas recorrentes em relação às Constelações, a primeira é sobre Bert Hellinger e a segunda sobre o machismo que, dizem alguns, Hellinger traz como pano de fundo de sua “teoria”.
Inicialmente, não existe uma teoria das Constelações. Bert Hellinger bebeu em muitas fontes antes de sistematizar o que hoje conhecemos como Constelações Sistêmicas. Ele estudou e vivenciou um grande processo terapêutico, por anos, com inúmeros terapeutas, como descreve também em seu livro póstumo, “Bert Hellinger, meu trabalho. Minha vida. A autobiografia do criador da Constelação Familiar”, lançado esse ano pela Editora Cultrix. Portanto, essa abordagem terapêutica traz muitas contribuições de pesquisadores, autores de outras abordagens, tais como as Lealdades Invisíveis de Iván Böszörményi-Nagy, o Psicodrama de Moreno, a PNL, a Hipnoterapia de Ericson, a Estrutura Familiar de Virginia Satir, todas as suas vivências e aprendizado com o povo Zulu, entre outras. Hellinger sistematizou o que chamou de “Ordens do Amor” e, a partir de representantes do sistema familiar envolvido, se utilizou de movimentos espontâneos dos representantes, de informações trazidas por eles e de frases simples e curtas às quais chamamos “frases de solução”. É um trabalho pautado no método fenomenológico, empírico, que busca por solução ou apenas o restabelecimento do fluxo amoroso no sistema, a partir da leitura do posicionamento dos elementos do sistema na constelação, da inclusão dos excluídos, do reposicionamento dos representantes em relação à hierarquia, da evidenciação de traumas ancestrais com os quais o cliente, porventura, esteja conectado.
Hellinger tem seus livros transcritos de seus inúmeros seminários, em todas as partes do planeta terra. Esse é um problema para o qual as pessoas, em geral, não se atentam. Se o método é fenomenológico, aquilo que é dito vale para o constelado naquele momento, se responde de acordo com o contexto.
Como seres humanos, é possível generalizar alguns aspectos da constelação de outrem, claro. Inclusive por termos, enquanto humanidade, traumas muito semelhantes em nossas gerações passadas. Traumas mostrados pela História como pandemias como a que vivemos na atualidade, guerras, violências diversas. Porém, o que acontece em um sistema constelado é daquele sistema particular.
Por conta de seus livros serem transcrição de seminários e das falas existentes nas constelações serem particulares (específicas para o que se apresenta na constelação), em um determinado momento Hellinger foi acusado de fascista, de adorar Hitler e simpatizar com o nazismo. Ele não se defendeu, como conta também em seu último livro e, na Alemanha e Europa houve um grande burburinho. Ele coloca neste livro, entre outros aspectos, que se fosse a favor de Hitler, seu primeiro curso de formação de consteladores não teria sido montado por judeus, em Tel Aviv, além de todo trabalho expandido para o resto do mundo, facilitado por seus amigos judeus, que foram em seu socorro naquele momento, inclusive com manifestos escritos e públicos por muitos deles. Sabemos do poder da política, do Poder…
Sobre o machismo e discriminação de gênero: Como dito acima, críticas são sempre importantes, pois levam a reflexões, a uma nova maturidade, talvez abram mesmo a possibilidade de se ver algo oculto, otimizando a percepção da realidade. Certamente, novos argumentos, progresso do campo e, quem sabe, uma maior força àquilo que se faz.
Constelação Familiar machista… coloca suas bases sobre o patriarcado… Bert Hellinger, o sistematizador maior do que tratamos aqui como Constelação, trabalho que visa o fluxo amoroso dentro dos sistemas, como ele próprio dizia, foi um dos homens que vi publicamente tratar o feminino com um profundo respeito. Especialmente no tocante a sua mulher, Sophie Hellinger. Um amor tão grande assim, entre um homem e uma mulher, com o respeito que ele demonstrava por ela, não vi em muitos seres humanos. Dentro do campo das Constelações entendemos que existe uma hierarquia, fundamentada no que ele sistematizou como Ordens do Amor, a Ordem da Hierarquia. Isso quer dizer que todos têm um lugar na família (ou em outro sistema qualquer). Que a família começa com o homem, no entanto ele está completamente a serviço da mulher, da família, da vida, se não houver emaranhamentos. Ambos têm a mesma importância, o mesmo tamanho dentro do sistema. O casal tem papel igual em todos os aspectos da vida e do relacionamento. A segunda Ordem do Amor diz acerca do Equilíbrio entre o dar e receber. E, no caso dos casais, um deve dar tanto quanto o outro, simples assim. Quando há desequilíbrios, há sofrimento. A Ordem da Pertinência tem a ver com as inclusões e exclusões; todos têm o direito de fazer parte. Quando há excluídos, há sofrimento. E assim é tanto para a família de origem, composta pelos filhos, pais, avós, bisavós, na linha consanguínea, como para outros cujo destino se emaranha de algum modo com essa família, através de vantagens ou desvantagens dessa família com outrem, não consanguíneos. Por exemplo, através de um assassinato, tanto agressor como vítima passam a fazer parte do mesmo sistema. Em relação à família atual, temos, obviamente, a mesma complexidade que a de origem. No entanto, pretendo diferenciá-la, pois devemos entender que uma criança tem apenas sua família de origem e um adulto, que já experienciou relacionamentos afetivos, de casal, provavelmente já tem sua família de origem e sua família atual. Essa última é composta pelos relacionamentos importantes, pelos filhos, nascidos e não nascidos, abortos – de modo espontâneo ou provocado; também podem fazer parte filhos do(a) parceiro(a) atual, assim como os pais de seus filhos. Aqui incluímos os vivos e os mortos, pois a Ordem do Pertencimento não exclui ninguém. Entendemos que os sistemas são organismos vivos, por isso nos fundamentamos nos campos morfogenéticos e entendemos que traumas importantes em uma geração são transmitidos para as próximas, consciente ou inconscientemente porque continuam fazendo parte do campo de memória, enquanto informação dentro do sistema. Olhamos, também, para a perspectiva da Epigenética. Portanto, a violência, o machismo tóxico da sociedade patriarcal na qual vivemos, não será extinto com tanta facilidade, a não ser que olhemos para isso com o pensamento mágico, infantil.
Nenhuma constelação vai olhar para uma cliente de violência doméstica entendendo que o agressor sairá curado de sua violência ou que a questão é vista no âmbito pessoal e não no estrutural. Estamos lidando com o inconsciente coletivo, onde o patriarcado predomina (no mundo, não só no Brasil) e podemos observar o que estava oculto no sistema, aquilo que tem a possibilidade de se mostrar e, a partir daí, tanto vítimas como agressores ganharem uma outra visão de sua própria realidade. Partimos do princípio da repetição de padrões de sofrimento na Transgeracionalidade. Muitos, antes de Hellinger, estudaram sobre esses padrões, especialmente nas doenças mentais, como o psiquiatra húngaro-americano Iván Böszörményi-Nagy, que falava das lealdades invisíveis entre gerações e do livro invisível de contabilidade familiar. Anne Ancelin Schützenberger, em seu livro “Meus Antepassados”, fala lindamente sobre Psicogenealogia, fala de inúmeros autores que, repito, antes de Hellinger, estudaram a mente humana, a violência, as doenças mentais, estabelecendo, através de Genogramas, as relações sistêmicas ou seja, as conexões entre violências, mortes precoces, grandes tragédias com o que já havia acontecido anteriormente; a relação entre o presente e o passado, os vínculos ocultos transgeracionais.
Como diz Sami Storch, juiz que trouxe a grande contribuição das Constelações na área do Direito, “não se pode violentar as leis. Menos ainda violentar as crenças e a cultura”.
O que ocorre dentro de uma Constelação Familiar é que podemos olhar e movimentar, dar outra ordem para aquilo que se mostra, compreender que, se repetimos padrões, se estamos em um campo de hábitos, como afirma Ruppert Sheldrake, somos também viciados. Viciados no sofrimento, na violência, nos modos de nos relacionarmos. Portanto, as constelações não preconizam mudanças fantásticas nem a “angelização” dos agressores. Não entramos na perspectiva fantasiosa, nem machista, nem feminista de que os casos com os quais trabalhamos são de ordem pessoal. São de ordem social, são sistêmicos, tem a ver com traumas transgeracionais. E não a teoria de que o homem sustenta qualquer coisa a mais do que a mulher na família, assim como não há a sustentação de uma teoria do equilíbrio onde o homem prepondera sobre a mulher na relação de casal ou nas relações de um modo geral.
O machismo é um preconceito onde não há igualdade de direitos entre os gêneros. Portanto, há aí uma opressão em relação ao feminino. Isso vem do patriarcado, da antiguidade, sabemos que ele atua não só nos relacionamentos de casal, mas em todas as áreas da vida, como no trabalho, no direito, nos privilégios sociais, na política, entre tantos outros. Ele traz, a nós mulheres, prejuízos individuais e sociais… quanto sofrimento, nós bem o sabemos.
Nas Constelações Familiares podemos olhar para a atuação das leis sistêmicas na vida do cliente e, no caso da justiça, a atuação prática da mesma. Olhamos para as conexões sistêmicas ancestrais, para as memórias do campo morfogenético que se mostram e, nesse sentido, incluímos as vítimas, os perpetradores, as situações traumáticas diversas dos antepassados. Sabemos que, dependendo da memória com a qual estamos conectados, honramos – termo de Hellinger, pelo sofrimento e repetição, àquilo que ocorreu lá.
Sou consteladora desde 2004 e professora-formadora em meu Curso de Formação de Consteladores desde 2010, atualmente em minha nona turma. Não sou advogada, nem juíza, mas entendo a importância dessa ferramenta no Poder Judiciário, por todos os resultados que nos chegam do trabalho de constelações. Ciências Sociais são o campo ao qual pertence o Direito, portanto, como afirma Storch, o Direito Sistêmico diz respeito ao relacionamento entre pessoas. O papel do juiz é de ser humano, além de técnico. Penso que esse papel é de todos os agentes do Direito. Como leiga na área jurídica (e consteladora), vejo que inúmeras vezes o que é essencial não se mostra, foge aos olhos de quem está no processo; tanto das vítimas quanto dos agressores. Nas Constelações temos a possibilidade de olhar mais profundamente e com outros olhos, a partir dos representantes, os quais não possuem vínculos com os envolvidos no processo.
Sami Storch começou esse trabalho com palestras vivenciais cuja temática era a separação de casais e o vínculo que nunca se desfaz, sem dizer que o nome da técnica que utilizava era Constelação. Colocou as pessoas em conexão e falou do fluxo do amor interrompido, das ressonâncias com o passado, dos traumas ancestrais. O efeito dessas intervenções foi a resolução de inúmeros conflitos. A Justiça Restaurativa atuando na conciliação, na pacificação, através da técnica Constelações Familiares.
A partir de então, sabemos que o Direito Sistêmico contém a Constelação em si, mas, além da técnica há, como afirma o juiz, a análise das leis, a interpretação das leis, como poderiam ser aplicadas, que leis podem ser aplicadas em cada situação de conflito, em cada processo. É a Ciência Humana não exata em ação. E, claro, não há a não responsabilização do agressor. Nem a ilusão de que ele mudará “da água para o vinho” por conta de uma constelação.
O que pode ser visto e priorizado, para além dos conflitos dos casais, dentro desse tipo de abordagem no Direito, é a relação de pais e filhos, colocar em questão o superior interesse das crianças e adolescentes; o respeito, o como tomar os pais, independentemente do que eles possam ter feito ou fazem; se olhar de outro modo para os conflitos dos adultos onde, em geral, os filhos são sacrificados. As Constelações trabalham com o posicionamento familiar e mostram, muitas vezes, o lugar dos pais e dos filhos no sistema.
Para mim, esse é um momento de grande iluminação, onde esse trabalho pode se mostrar à serviço da vida, em todas as áreas onde há relações humanas.
No Campo do Direito, na violência doméstica, nos conflitos mais complicados, onde há vítimas e agressores, após a constelação seria muito importante que o agressor pudesse ser encaminhado para um trabalho de psico-educação, pois entendemos que estamos em um campo de hábitos (viciado) e não temos a intenção infantil de mudar o agressor, ou o sistema patriarcal e todas as suas crenças e abusos contra o feminino. Assim como a vítima que, como na Síndrome de Estocolmo, muitas vezes perpetua as agressões por não saber fazer diferente, por se “afeiçoar” à violência, bem sabemos, como estratégia de sobrevivência.
Pensar que se muda essa realidade com uma constelação é pensar magicamente e nenhum constelador sério ou qualquer agente do Direito propõe isso. No campo das Constelações, nada deve ser excluído, é importante compreender. Não se exclui o agressor, não se exclui a vítima. O movimento é inclusivo e amoroso. Quando o movimento é excludente, há desafeto, há discórdia, há conflito. Aqui olha-se para o trauma.
Nesse sentido, as Constelações, a serviço da Justiça Restaurativa não funcionariam como algo herdado do sistema patriarcal para a violência doméstica, o feminicídio, para que não funcione efetivamente, para se manter o machismo e a violência impunes ou atenuados.
Entendo que é necessário iniciarmos pesquisas sérias, reconhecidas pela Academia, coletando dados a partir, inclusive, dos serviços já montados, estudos de impacto, onde poderiam ser investigados os resultados que já estão presentes, como, por exemplo, se há reincidência na violência e qual índice de reincidência, entre outras tantas perguntas.
Por último, gostaria de abordar sobre o papel irresponsável de profissionais do campo das Constelações. Infelizmente eles existem e em todas as áreas. Há muitos bons profissionais, mas há também aqueles mal formados, que querem e encontram cursos rápidos, à distância, sem práticas coerentes com profissionais experientes neste campo. Volto a dizer, assim como em todas as outras áreas, até mesmo na medicina e psicologia. Devemos abrir nossos olhos e observar com quem nos conectamos para realizarmos esse trabalho, do mesmo modo como devemos ter cuidados especiais ao escolher nossos médicos e advogados.
Em síntese, Hellinger foi acusado de ser simpatizante do nazismo, porém seu trabalho saiu da Alemanha para o mundo com o auxílio de judeus. Foi acusado de machista e passou todo seu trabalho com sua mulher, Sophie, que hoje é quem lidera sua escola.
Ana Lucia Braga, Primavera de 2020.